“Quem teve a desgraça de nascer cativo
de um mau senhor, dê por aqui, dê por acolá, há de penar sempre.”
Observo
as ondas do mar, em seu fluxo cotidiano, e as invejo. Invejo sua liberdade, sua
beleza, seus traços que viajam sem rumo e sem obstáculos; mas o ápice da inveja
se dá quando penso na ausência de um coração. Ah, o coração! Tão vital quanto
mortífero é capaz de arruinar a vida de uns enquanto a fornece para outros.
É
por causa dos males causados por esse órgão tão vil que me encontro em um
navio, observando o mar enquanto penso no caminho incerto que me espera. Meu
senhor, dono de meu corpo, exigiu também ser dono de minha alma e meu coração,
porém estes se encontram mais livres do que o mais rico dos homens brancos. Há
tempos recebo suas investidas, negando-as em nome da minha integridade e em
honra a minha senhora, Malvina, fiel esposa do senhor Leôncio e minha amiga e
confidente, que me apoiou e me amparou desde a morte de sua sogra.
A
mulher do comendador, mãe de Leôncio, me adotou após a morte de minha mãe –
fiel mucama da mansão – e me criou como sua própria filha, dando-me apenas o
melhor em termos de educação e padrões de vida. Porém, apesar de tudo isso,
sempre soube conhecer meu lugar.
Sou
fruto de um amor proibido, entre escrava e feitor, e por isso nunca obtive
consideração por parte do comendador. Esse fora atraído pela beleza estonteante
de minha mãe, e negado tantas vezes que deixou-se consumir por uma sede de
vingança que levou a mulata da mansão para a senzala, e da senzala para o
túmulo. Meu pai, feitor português, foi expulso da fazenda apenas com uma
promessa de libertar a filha em troca de dez mil contos de réis.
Não
sofro constantemente pela morte de minha mãe, visto que não a conheci, mas não
posso deixar de imaginar como seria caso ela estivesse ao meu lado agora que estou
praticamente na mesma situação em que ela viveu, tendo apenas um fato como
diferença: estou fugindo.
Meu
pai, após muito esforço, conseguiu juntar a quantia necessária para me libertar
e por isso foi à fazenda tratar desse assunto com Sr. Leôncio. Porém, meu
obcecado dono foi incapaz de conceder-lhe minha alforria, tendo como desculpa a
necessidade de uma consulta com seu pai, que se encontrava na corte.
Quando
a notícia da morte do comendador chegou, minha desilusão foi completa. Abracei
a ideia do meu eterno cativeiro e tentei me conformar com qualquer lugar a mim
designado pela vida e pelos meus patrões. Assim como minha mãe, fui dispensada
da função de mucama, uma vez que minha senhora, a bondosa Malvina, descobriu os
interesses de seu marido para comigo e não me quis mais ao seu lado. Segundo
ela, não havia espaço o suficiente para nós duas na mansão nem mesmo no coração
possessivo do homem, por isso, quando minha liberdade foi negada, a dama não
demorou a seguir seu irmão até a casa de seus pais.
De
repente, vi-me sozinha no lugar em que costumava me sentir rodeada de pessoas e
alegria. Fui rebaixada para a área das tecelãs, juntamente com outras mulatas. As
escravas já não me olhavam com a simpatia de antes; as expressões variavam de
pena até inveja, como uma delas, chamada Rosa, fez questão de deixar bem claro
quando nos encontramos. E como se não houvesse confusão suficiente em minha
vida naquele momento, recebi juras de amor vindas também de Belchior, o
jardineiro deformado, e de André, o pajem. Ambos figuras por mim muito
apreciadas, mas nenhum que despertasse em mim os sentimentos profundos que eu
esperava encontrar em meu futuro marido.
Aprisionada
em meus pensamentos e maldições, dentro de casa contava quatro inimigos,
decididos a torturar-me o coração: três amantes, Leôncio, Belchior, e André; e
Rosa, que, sendo escrava como eu, deveria ter se apiedado de minha situação,
visto que a ela mal algum fiz eu.
Tudo
isso culminou na minha fuga, auxiliada por meu querido pai, que conseguiu com
um amigo português um barco. Vivo agora na incerteza, sem saber o que me espera
no futuro, e principalmente, sem ao menos saber se há um futuro.
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