Nadando contra a correnteza

“O coração é livre, ninguém pode escravizá-lo, nem o próprio dono.”
Ando ocupada, tentando organizar não só minha mente conturbada, mas também minha nova vida ao lado de meu pai, em um lugar onde não conhecemos nada nem ninguém. Nossa chegada em Recife foi tão quieta quanto nossa saída de Campos, e não fomos capazes de apreciar a cidade tida por todos como a “Veneza da América do Sul”. Nossa rotina se estabeleceu em uma chácara alugada, onde permanecemos afastados até que o destino decidiu fazer passar pelo nosso caminho alguém que aceleraria meu pulso e mudaria completamente o rumo de minha história.
Da primeira vez em que o vi, ignorei toda a curiosidade que cresceu dentro de mim e corri para dentro de casa. Observei escondida pela janela o belo moço olhar intrigado os jardins e, após alguns minutos, desistir e seguir seu rumo. A mesma cena se repetiu mais algumas vezes, e a cada dia a vontade de conhecê-lo crescia em meu peito. Um dia, porém, a sorte enfim voltou-se para mim e deixei cair um lenço no jardim enquanto fugia para me esconder. Antes mesmo de chegar à soleira da chácara, ele me alcançou e me devolveu o acessório, demonstrando extrema simpatia e respeito. A conversa não foi estendida, e mais uma vez assisti enquanto ele seguia seu caminho para longe. 
No meio da maré de azar em que eu e meu pai vivíamos me foi dada novamente uma amostra de fortuna quando, ao encalharmos o bote na areia, vimos alguém sair de um carro e vir em nossa direção prestar socorro. Não consegui conter o sorriso ao perceber que o moço que nos ajudara era também quem alegrava minhas tardes apenas com sua passagem. Álvaro, como se apresentou logo no começo, demonstrou ser tão belo por dentro quanto por fora, oferecendo-nos todo o tipo de ajuda necessária na construção de uma vida na nova cidade. Logo se tornou uma visita frequente em nossa chácara, sempre nos convidando para conhecer sua casa e o resto de Recife, porém nós, em nossa sina fugitiva, insistíamos em negar os convites, usando a evidente pobreza como desculpa para a não socialização.
Era cada vez mais difícil mentir para ele; a felicidade que sua presença produzia em meu coração dava lugar à agonia toda vez que ouvia seus lábios me chamarem por Elvira, nome falso que adotei como um modo de proteção e recomeço. Eu o amava, e me sentia um infame por ter que enganá-lo e não corresponder às expectativas de seu coração e também da sociedade. Ele, um moço rico e bem afeiçoado, não merecia alguém que, além de pobre, era também uma escrava fugida, uma figura que não recebe nada além de desprezo na sociedade. Nosso amor é fadado ao fracasso, por isso, tentei ao máximo afastá-lo e manter os fortes sentimentos apenas no costumeiro sofrimento de meu coração.
Conforme o tempo passou, porém, as desculpas foram se esgotando enquanto a insistência do homem aumentava. Meu pai, atendendo pelo nome de Anselmo, por fim aceitou um de seus convites, sob o argumento de que a sociedade recifense já desconfiava de pai e filha nunca aparecerem nos eventos ou mesmo conversarem com seus vizinhos. A insegurança demonstra-se mais forte do que eu novamente, e tento convencer meu pai a declinar o convite posteriormente, porém, não seria educado uma vez que nossa presença fora prometida ao rico cavalheiro. Deveria eu comparecer ou não? Por um lado, gostaria de passar ao lado de meu amado os meus últimos momentos nessa cidade, antes de partir para meu destino incerto de fugitiva; mas expor-me desse modo apenas por momentos de felicidade seria perigoso e um tanto quanto fútil.
Por fim, sou convencida por meu coração tolo e por um pai confiante, e animo-me vagamente com a ideia. Não pertencerei ao ambiente, não terei um vestido de luxo ou joias deslumbrantes, mas estarei em companhia de meu amado, e acalento-me com a ilusão de que isso será suficiente. Afinal, a perversidade dos homens pode acaso destruir o que há de bom e de belo na feitura do Criador?

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