Aura em liberdade

 “É desgraçadamente assim; mas se a sociedade abandona desumanamente essas vítimas ao furor de seus algozes, ainda há no mundo almas generosas que se incumbem de protegê-las ou vingá-las.”

Creio eu que este seja, afinal, o último de meus lamentos. Minha vida está no caminho certo, pela primeira vez desde que dancei com Álvaro no baile em Recife. Estamos juntos novamente, e o casamento está marcado para a data mais rápida que conseguimos encontrar. Mas estou me adiantando. Voltemos à cena onde eu e meu amado fomos tragicamente separados.
Mais de dois meses se passaram desde minha vinda do Recife, e posso dizer que foram os piores de minha existência. Leôncio manteve-me presa como um espetáculo que só ele tinha o direito de assistir, longe de outros habitantes da mansão, vivendo em condições precárias, comendo a mesma quantidade que o mais atrevido dos escravos da senzala. Sua intenção era enfraquecer-me até que meu corpo cedesse aos seus cortejos e ofertas indecorosas. Em meu coração, a última das esperanças estava padecendo em virtude de uma carta a mim entregue há alguns dias. Seu conteúdo, escrito por meu amado, quebrou-me em tantos pedaços que larguei completamente qualquer zelo em relação a mim mesma, aceitando qualquer destino que me fosse imposto. Naquelas palavras, Álvaro negava qualquer tipo de sentimento que já tivera por mim, contradizendo todas as juras antes feitas, e declarava-se casado com uma moça da alta sociedade.
Meu destino estava selado: casar-me-ia com Belchior, o jardineiro. Eu, antes vista como bela, cortejada por tantos, terminaria meus dias ao lado de um homem disforme. Se não pudesse ter o amor de Álvaro, nada mais me interessava. Não encontraria alguém que me completasse como ele, então o mais certo a fazer seria aceitar o marido que meu pai sugerira.
Depois de comer uma refeição digna e finalmente reencontrar as pessoas que eu era acostumada a ver todos os dias, estava apenas à espera do padre, que chegaria à fazenda para realizar o casamento a qualquer momento. Meu noivo mostrava-se ansioso, juntamente com Leôncio e Malvina, agora reconciliados, que me olhavam com crueldade, arrogância e até mesmo um pouco de pena por parte de minha senhora e ex-amiga.
Quando finalmente bateram à porta, a entrada do visitante foi permitida, e em segundos adentrou a sala não o padre, como todos esperávamos, mas sim Álvaro, com um terno elegante e um sorriso inesperado no rosto. Ele estava do mesmo jeito que eu me lembrava, apenas um pouco mais cansado. Vê-lo novamente trouxe à tona todo o amor antes oculto em meu peito; juntaram-se pedaços do meu coração que antes eu considerava irreparável.
O choque de todos os presentes só aumentou quando, ao ser indagado o motivo da sua visita, meu amado exibiu triunfante documentos que alegavam sua recente compra da propriedade na qual nos encontrávamos. Leôncio, ao herdar a fazenda de seu pai, não fora capaz de garantir os lucros e investimentos antes feitos, e sua busca desesperada por mim apenas aumentou as dívidas. Sua situação financeira era tão crítica que implorara Malvina de volta visando a grande riqueza que sua família possuía. 
Álvaro, que não desistira nem se casara com outra moça – tudo isso tendo sido forjado por meu senhor para me fazer desistir de meu amor –, tomou conhecimento da quantia em falta, e comprou todos os títulos a ela referentes. Assim, viera ao Rio, triunfante, reclamar a posse da fazenda e de todos os seus habitantes, incluindo eu, Malvina e Leôncio.
O caos se instalou uma vez que todos se deram conta de que passariam de patrões a serventes, e meu antigo senhor, espumando de raiva, proferiu palavras ardilosas contra meu amado, e no final retirou-se para ao cômodo ao lado, seguido fielmente por Malvina.
Pude finalmente cair nos braços do homem que eu realmente amava, e que me presenteava não apenas com minha liberdade, mas também com seu amor, do qual eu nunca deveria ter duvidado. A promessa se manteve: nosso amor foi mais forte que o mais tenebroso dos obstáculos, travou e venceu uma luta declarada impossível por muitos. Afinal, receberíamos a maior recompensa do destino, que nos fora injustamente negada há tanto tempo: a garantia do eterno em companhia um do outro.
Não posso refutar o pesar que percorreu meu coração ao escutar o tiro que dera fim à vida de meu antigo algoz.
Retiro-me, pois agora já não sou mais exclusa. Tenho meu marido, minha casa, sou livre para dizer, cantar e viver o quanto quiser. O medo que me dominava antes, já foi há muito esquecido, e a canção dos cativos, quando volta à minha mente, é apenas a lembrança de uma época que nunca mais voltará. 

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