“Juno e Palas não
ficaram tão despeitadas, quando o formoso Páris conferiu a Vênus o prêmio da
formosura.”
Que vida desgraçada a minha. Devia ter seguido meus instintos
e recusado ao convite de Álvaro. Ah! Álvaro, o que seria de mim se não fosse
seu auxílio e seu amor, isto é, se ainda for dona deste.
Assim que adentrei o salão daquele edifício tão
magnificamente iluminado e barulhento, devido ao grande número de presentes, soube
que eu não pertencia aquele lugar. A cena não se assemelhava a nada que eu já
tivesse alguma vez visto. Tantas cores, texturas, as sedas tão macias e o
cheiro dos mais diversos perfumes que, se fechasse meus olhos, poderia
ludibriar-me e pensar estar em um jardim repleto de flores, todas exalando seus
esplêndidos cheiros tão aprazíveis para as minhas narinas. Estava rodeada de
luxo. Tranquilizou-me um pouco ver que, ali presentes, encontravam-se pessoas
de diversas classes, não só ricos e nobres. Apesar disso, nada desfazia o
caroço em minha garganta que se formara devido à aflição de meu coração por
saber que eu, uma escrava fugida, estava frequentando um sarau ao lado de
senhores e senhoras de respeito como se fosse uma igual.
Fiquei um pouco acanhada, confesso, ao perceber a
simplicidade com que me vestia em comparação às vestes do restante dos
convidados. Logo, Álvaro me localizou ao lado de meu pai e veio ao meu
encontro, a vista de seu belo sorriso e olhos iluminados esvaziando
momentaneamente minha cabeça de todos os problemas e preocupações e me deixando
em êxtase. Quando retornei de meus tolos devaneios, a culpa já voltara corroendo
minhas entranhas, e o velho aperto no coração parecia ainda pior.
Galante como sempre, Álvaro, senhor do meu coração, nos
mostrou o resto do recinto e depois exibiu-me para seus amigos, fazendo
comentários enaltecedores a meu respeito. Em cada parada que fazíamos, apontava
meus dotes, tornando o rubor em minhas bochechas ainda maior e, para meu
desgosto, começava a gerar certa hostilidade dos convidados para comigo.
Os sorrisos amarelos de tanta falsidade, o furtivo
cochichar das damas, os olhares atirados em minha direção, antes curiosos,
agora repletos de desdém. Tudo isso foi fazendo com que o desconforto que eu já
sentia aumentasse astronomicamente. Meu coração batendo cada vez mais rápido,
minhas orelhas quentes (e tenho certeza de que, se pudesse tê-las visto,
estariam mais vermelhas que morangos), o suor frio na palma de minhas mãos,
minhas respirações curtas e rápidas. Precisava de ar e, por isso, segui com meu
pai para um dos cômodos mais vazios do edifício.
Tudo que eu queria fazer era fugir, sair correndo daquele
lugar e deixar tudo para trás, fugir como a presa foge de seu predador, como
uma mentirosa foge da verdade. Contei minhas angústias para meu progenitor ali
mesmo, num afobamento cada vez maior, começando a chamar atenção das pessoas em
volta, e, como sempre, com seus sábios conselhos, ele conseguiu colocar juízo
em minha cabeça. Por mais doloroso que fosse teríamos que partir em breve,
deixando para trás essa cidade, e essas pessoas que tanto cativei - deixando
para trás Álvaro. Mas ainda era necessário que eu me mostrasse alegre e satisfeita
para não levantar mais suspeitas.
Poucos instantes após o meu (quase) surto, Álvaro veio a
nossa procura com um pedido: que eu tocasse piano para todos. Um arrepio
percorreu minha espinha, me fazendo estremecer quando ouvi o pedido, a recusa
já na ponta da língua, mas não consegui negar. Eu o amo mais que tudo e não
podia relutar; não quando meu amado havia se empenhado tanto para apresentar-me
como um protótipo de beleza e talentos aos olhos de todos ali presentes. Não
podia decepcioná-lo, por isso cantei o meu melhor, apenas para que ele pudesse
triunfar diante daquela brilhante sociedade.
Ao encostar nas teclas do piano, senti uma emoção já
conhecida tomar conta de meu corpo. Concentrei todas as minhas energias nas
notas que meus dedos produziam quase involuntariamente. Cantei como fazia
sentada ao piano da mansão, cantei com uma tranquilidade que nem eu mesma sabia
que possuía naquele momento. Quando abri os olhos, saindo de meu transe, todos
me aplaudiam de pé.
Saí o mais rápido possível do centro, feliz ao ver o
sorriso que meu amado exibia ao comentar sobre mim com seus conhecidos. Minutos
depois, veio a mim cobrar uma dança prometida mais cedo.
Estava tudo perfeito. Dançávamos com tanta perfeição que
qualquer um que nos observasse pensaria ser uma coreografia ensaiada por meses,
quando na verdade era apenas o encaixe perfeito de duas almas gêmeas. Ao fim da
quadrilha, não sabia dizer ao certo se as minhas batidas aceleradas de meu
coração se davam pela dança ou pela companhia de Álvaro. Ele conduziu-me até um
salão mais afastado, e para o meu espanto, jurou amar-me desde o primeiro
momento em que nos vimos.
Lágrimas surgiram em minha face. O quão desgraçada era
minha sorte? Finalmente escuto as palavras mais desejadas por qualquer moça,
vindas do homem com quem quero passar o resto da minha vida, e não consigo
respondê-lo propriamente, não ouso, pois sei que para nós não há futuro. E
talvez não haja nem mesmo para mim. Enquanto rodopiávamos pelo salão, avistei uma
figura me encarando como um predador vigia sua presa, acompanhando meus
movimentos com os olhos. Um homem com crueldade nos olhos, que se mostravam tão
gelados que me causaram arrepios pelo corpo todo. Naquele momento tive certeza
que havia sido descoberta. E não foi pra menos.
Passaram-se menos de cinco minutos e vi o homem andando
em nossa direção, sabia que estava perdida. Procurei freneticamente pelos
gentis olhos de meu pai na multidão ao meu redor, tentando pensar em um modo de
escapar do que estava prestes a acontecer, mas era inevitável. Quando a sombria
figura nos abordou com uma profunda referência, minha garganta secou
completamente, os tremeliques de meu corpo se tornaram incontroláveis, um peso
cada vez maior no fundo de meu estômago, pensei por um momento que ia vomitar. Fiquei
ainda pior no momento em que tudo foi revelado, quando escutei o agora
intitulado Martinho ler para quem quisesse ouvir as seguintes palavras:
Martinho terminou de proferir seu maldito discurso e eu já me encontrava nos braços de meu pai, desfazendo-me em lágrimas de vergonha. Não aguentei o burburinho que crescia no salão, nem os olhares de nojo das pessoas ao meu redor, tive medo de olhar para Álvaro e do que eu encontraria em suas feições, mas assim que comecei a falar não consegui mais parar. Tirei tudo do meu peito, deixei as palavras jorrarem de minha boca, acompanhadas de constrangimento e incessantes pedidos de desculpas. Ao terminar me senti vazia, um buraco em meu peito, senti uma tontura repentina, pontos pretos dançando no canto dos meus olhos, minhas pernas bambas e, finalmente, a escuridão completa.
Martinho terminou de proferir seu maldito discurso e eu já me encontrava nos braços de meu pai, desfazendo-me em lágrimas de vergonha. Não aguentei o burburinho que crescia no salão, nem os olhares de nojo das pessoas ao meu redor, tive medo de olhar para Álvaro e do que eu encontraria em suas feições, mas assim que comecei a falar não consegui mais parar. Tirei tudo do meu peito, deixei as palavras jorrarem de minha boca, acompanhadas de constrangimento e incessantes pedidos de desculpas. Ao terminar me senti vazia, um buraco em meu peito, senti uma tontura repentina, pontos pretos dançando no canto dos meus olhos, minhas pernas bambas e, finalmente, a escuridão completa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário